Por Tathiane Piscitelli*
O cenário de pobreza menstrual em que vivem milhares de mulheres, meninas e outras pessoas que menstruam não é novidade. Ao longo de 2021, diversas pesquisas foram produzidas sobre o tema, atestando a dificuldade de acesso a absorventes e a condições básicas de higiene necessárias para garantir a integridade física dessas pessoas. Segundo relatório publicado pela Unicef, mais de 4 milhões de meninas (38,1% do total das estudantes) frequentam escolas com a privação de […] requisitos
mínimos de higiene”. Desse conjunto, há 200 mil alunas que não têm acesso a nenhum item de higiene básica no ambiente escolar, de modo que “estão totalmente privadas de condições mínimas para cuidar da sua menstruação na sua escola”.
Da perspectiva pública, o enfrentamento dessa realidade pode ser feito de duas formas complementares. A primeira consiste na distribuição gratuita de bens de higiene menstrual àquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica; e a segunda se relaciona com a redução da tributação sobre tais bens.
No que se refere ao primeiro instrumento, no final de 2021 o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.214, que previa a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, no contexto do qual haveria a distribuição gratuita de absorventes para meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade econômica. Para tanto, seriam utilizados recursos do SUS, Sistema Único de Saúde. A medida representaria avanço significativo e teria a capacidade de retirar milhares de pessoas da situação de pobreza menstrual e de limitações de direitos básicos em que se encontram.
A despeito disso, os dispositivos foram vetados pelo Presidente Jair Bolsonaro, com fundamento
em argumentos equivocados relacionados com a inadequação financeira da medida. Quanto ao segundo instrumento, deve-se destacar que o Brasil é um dos países que mais tributa absorventes no mundo, principalmente via ICMS.
Há aqui uma contradição relevante: o ICMS, por determinação constitucional, é imposto que deve observar a seletividade, à luz da essencialidade dos bens e serviços que onera. Não há qualquer dúvida que produtos de higiene menstrual são bens de consumo essencial, cujo acesso está diretamente
relacionado à dignidade da pessoa humana e não há qualquer outro produto que se equipare
aos absorventes e assemelhados no universo da população que não menstrua. A tributação em
níveis que não observam a essencialidade dos bens em jogo também resulta em discriminação de
gênero promovida pelo sistema tributário.
Ainda no ano de 2021, discutiu-se no Comsefaz proposta de convênio que autorizava a concessão
de isenção de ICMS nas operações com produtos de higiene menstrual7, com previsão de dedução
do valor do imposto do preço dos bens, com demonstração expressa no documento fiscal.
A proposta, no entanto, não foi adiante e o argumento da regressividade do benefício fiscal ecoou em muitos foros. Contudo, como já destaquei em outra oportunidade, o fato de a população mais pobre gastar menos com esses bens do que as camadas mais altas da sociedade apenas mostra que aquelas que têm menos capacidade econômica se refreiam no consumo e optam por substitutos que colocam sua integridade física – e muitas vezes mental – em risco.
Reportagem recente da Folha de S.Paulo atesta este ponto: diante da escassez de recursos financeiros
que assegurem, a um só tempo, a possibilidade da compra de alimentos e de absorventes, mulheres
da Ilha de Marajó contêm o fluxo menstrual com pedaços de pano. A essencialidade de ambos
os bens é evidente e não há justificativa sólida para a discrepância no tratamento tributário,
especialmente à luz da falta de políticas públicas nacionais que assegurem a distribuição gratuita de
absorventes e produtos assemelhados.
Por isso tudo, o tema merece ser amplamente discutido, e a adoção de políticas públicas
consistentes e de alcance nacional é urgente. A desigualdade de gênero foi severamente
intensificada com a pandemia da Covid-19. O não enfrentamento adequado da pobreza menstrual
afasta as meninas da educação formal, coloca-as em estado de vulnerabilidade econômica e atrasa o
desenvolvimento econômico do país.
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Tathiane Piscitelli é professora de direito tributário da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas. Coordenadora do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da mesma
instituição. Doutora em direito pela Universidade de São Paulo